Carinho marca treino de Vanessa
Ela corre as vezes que Paulo Colaço lhe pede e sorri a cada paragem. Na pista da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto (FADEUP) evolui uma Vanessa Fernandes com o espírito dos seus melhores anos. A medalhada olímpica de triatlo, que decidiu terminar com um período de oito anos de preparação no Centro de Alto Rendimento do Jamor, para regressar às origens, encontrou tudo o que desejava: vive na casa dos pais, reencontrou antigas amizades e tem no professor universitário alguém que se preocupa mais com a pessoa do que com a campeã. Vanessa estava saturada e, para renascer, precisava de carinho.
"Tinha de se construir um ambiente positivo. Um atleta não pode ter a cabeça ocupada com problemas", diz Paulo Colaço, após uma manhã de treino aquecida pelo sol de Inverno. "O que Vanessa passou é algo que só compreendemos colocando a questão a nós próprios: imaginemos o que é viver oito anos num Centro de Alto Rendimento e passar toda a juventude, dos 16 aos 24 anos, longe de família e amigos. E também, olhando a mais dois ciclos olímpicos, pensar que isso se prolongaria mais oito anos", completa.
Vanessa sorri, mas sabe que a sua opção implica um recomeço. "Na próxima época não penso na Taça do Mundo. Gostava de ir ao Europeu, mas preciso ter calma", atira, para o técnico explicar os passos a dar: "Este é um ano para conhecer a sua filosofia de treino. O mais importante, em 2010, é construir as fundações do trabalho que se vai fazer. Carregar as baterias, para as poder gastar mais tarde. Um atleta precisa de períodos de menor impacto de treino. Estamos a trabalhar sem nos preocuparmos com o que ela fará em Julho, Agosto ou Setembro. Vamos verificar como está, e mais tarde definiremos metas".
Colaço aponta os maiores "objectivos para 2011, embora este ano ainda vá ser estudado, com a federação de triatlo, onde e quando ela será mais necessária". Para já, o que lhe importa é "o aspecto mental". "O treino tem sido muito psicológico, pois a Vanessa está em recuperação. Mas é fácil perceber que se trata de uma atleta de alto nível. Quando se sente bem, a sua entrega ao treino é fabulosa. Temos o hábito, ao olhar um campeão, de pensar em braços e pernas, mas a cabeça é que decide. É ela que faz os campeões". E, na FADEUP, todos gostam de ver uma campeã. "Recebo imensos emails a oferecer ajuda. A Vanessa está a ser muito acarinhada", completa Paulo Colaço.
Vanessa Fernandes
"Encontrei tudo o que me faltava"
É uma pequena entrevista de sorriso nos lábios. Vanessa Fernandes sente-se, aos 24 anos, uma nova mulher.
Agora que treina em ritmo de cruzeiro, como se sente?
Bem. Tenho de estar muito bem. Estou em casa dos pais, onde nada me falta, e tenho um treinador com quem converso muito e é um amigo. Não se preocupa com a Vanessa que ganha tudo, mas mais com a pessoa. Era isto o que me faltava.
Isso deixa uma crítica implícita aos seus antigos treinadores?...
Não. Foram pessoas muito importantes para mim e nunca irei esquecê-los. Se mudei foi porque já não me sentia bem. A saturação começou ainda antes dos Jogos de Pequim. Já nem sabia bem quem era e continuei no CAR, em Lisboa, por ter um objectivo e não querer desiludir ninguém. E porque o meu pai e os colegas, como o José Estrangeiro, me deram muita força. A opção de ir para Lisboa foi minha, tal como a de voltar, pois sentia que estava a mudar como pessoa e a desaparecer como atleta, devido à saturação e desmotivação. Agora quero olhar em frente.
E como é esse em frente?...
Vai ser um processo de evolução lenta. O professor ainda me está a descobrir e de certeza que na primeira prova não irei para ganhar.
Um ano calmo depois de um ano mau...
Para mim todos os anos são bons. Não ganhei, mas aprendi. E recebi muito apoio, como o do Benfica, que me sensibilizou pelas mensagens que sempre enviou.
"Toda a faculdade lhe abriu as portas"
"Gosto de trabalhar em equipa. A faculdade disse logo no primeiro dia que estaria inteiramente à disposição da Vanessa e estou a receber grande colaboração dos meus colegas. Há especialistas em força, prevenção de lesões e nutricionismo a trabalhar com ela. O pai é precioso no ciclismo; não vou poder nadar com ela, mas há cá quem o faça. Em suma, haverá um grupo extenso de pessoas para trabalhar com ela, e ainda a federação de triatlo, pois ela continuará a ir a estágios e fará o trabalho em altitude com os colegas de selecção", alonga-se Paulo Colaço, que antes de arrancar em pleno com os treinos fez uma extensa bateria de testes a Vanessa Fernandes. "Permitiram concluir que está até melhor do que pensaríamos. Não em plena forma, mas também não tão mal assim...", revelou, adiantando que "está agora em adaptação a intensidades de treino mais elevadas e reage tão bem, física e psicologicamente, que dá confiança".
"Gostam mesmo de mim"
No Porto não tem um grupo de treino como em Lisboa...
Acaba por ser igual e, tendo vontade, tudo se resolve. Chego a casa e tenho o almoço feito pela minha mãe e as coisas arrumadas, o que faz uma grande diferença. Tenho o meu pai, que foi grande ciclista e sabe mais do que eu pensava. E vários corredores que já se ofereceram para treinar comigo. Tenho a piscina na Feira, a da Granja e em Espinho. Sempre me convidaram... Tinha colegas de grande qualidade, mas agora terei outros.
E, além de treinar, que faz mais?
Também tenho visitado escolas e nunca pensei que gostassem tanto de mim. Gosto imenso de estar com os miúdos, são tão puros... Ainda no outro dia uma miúda me tocou na mão e disse: "Ela é como nós...". Como se eu não fosse de carne e osso. Estes convívios fazem-nos falta, abrem-nos a mente.
Paulo Colaço
"Isto é um orgulho"
"Não sabia sequer que a Vanessa tencionava mudar para o Porto. A primeira surpresa foi essa, outra lembrarem-se de mim", confessou Paulo Colaço, que aconselhou a triatleta "a pensar bem, pesando benefícios e prejuízos, pois estes também existem ao abandonar-se o grupo de tantos anos". "Ela estava decidida e o passo seguinte foi estudar a melhor solução. A Vanessa abriu-se muito comigo e acabei por perceber que teria de assumir a responsabilidade. Reagi como português e como treinador, por isso não escondo que é um orgulho treinar a Vanessa. Como era necessário muito diálogo, comecei por conversar com o presidente da Federação de Triatlo e com o anterior treinador dela, o Sérgio Santos. Eles apadrinharam logo a solução", contou.
Mais oito anos tendo os Jogos como meta
Vanessa tem 24 anos e Paulo Colaço analisa-a como tendo toda uma carreira pela frente, apesar de já ter sido pentacampeã europeia, campeã mundial, medalhada de prata olímpica e recordista de vitórias na Taça do Mundo. "Acho preferível ter uma Vanessa até mais tarde do que uma a ganhar todos os anos e a acabar mais cedo. Com uma boa periodização do esforço, ela tem no mínimo dois ciclos olímpicos pela frente, provavelmente até mais", diz o doutorado em Ciências do Desporto pela FADEUP, considerando que os Jogos Olímpicos serão sempre o sonho da triatleta, apesar de a modalidade ter uma vertente profissional. "Ela tem enraízado um forte espírito olímpico. Já teve de optar uma vez e foi pelos afectos, não pela questão financeira", revela Colaço, que quer ter Vanessa competitiva em 2011, mas pensa sobretudo em Londres'2012.